O Cortiço
Tendo como cenário uma habitação coletiva, o romance difunde
as teses naturalistas, que explicam o comportamento dos personagens com base na
influência do meio, da raça e do momento histórico
Ao ser lançado, em 1890, O Cortiço teve boa recepção da
crítica, chegando a obscurecer escritores do nível de Machado de Assis. Isso se
deve ao fato de Aluísio de Azevedo estar mais em sintonia com a doutrina
naturalista, que gozava de grande prestígio na Europa. O livro é composto de 23
capítulos, que relatam a vida em uma habitação coletiva de pessoas pobres
(cortiço) na cidade do Rio de Janeiro.
O romance tornou-se peça-chave para o melhor entendimento do
Brasil do século XIX. Evidentemente, como obra literária, ele não pode ser
entendido como um documento histórico da época. Mas não há como ignorar que a
ideologia e as relações sociais representadas de modo fictício em O Cortiço
estavam muito presentes no país.
RIGOR CIENTÍFICO
Essa criação de Aluísio de Azevedo tem como influência maior
o romance L’Assommoir, do escritor francês Émile Zola, que prescreve um rigor
científico na representação da realidade. A intenção do método naturalista era
fazer uma crítica contundente e coerente de uma realidade corrompida. Zola e,
neste caso, Aluísio combatem, como princípio teórico, a degradação causada pela
mistura de raças.
Por isso, os dois romances naturalistas são constituídos de
espaços nos quais convivem desvalidos de várias etnias. Esses espaços se tornam
personagens do romance.
É o caso do cortiço, que se projeta na obra mais do que os
próprios personagens que ali vivem. Um exemplo pode ser visto no seguinte
trecho:
“E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia,
ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se,
inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela
floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e
cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte,
ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.”
O narrador compara o cortiço a uma estrutura biológica
(floresta), um organismo vivo que cresce e se desenvolve, aumentando as forças
daninhas e determinando o caráter moral de quem habita seu interior.
NARRADOR
A obra é narrada em terceira pessoa, com narrador onisciente
(que tem conhecimento de tudo), como propunha o movimento naturalista. O
narrador tem poder total na estrutura do romance: entra no pensamento dos
personagens, faz julgamentos e tenta comprovar, como se fosse um cientista, as
influências do meio, da raça e do momento histórico.
O foco da narração, a princípio, mantém uma aparência de
imparcialidade, como se o narrador se apartasse, à semelhança de um deus, do
mundo por ele criado. No entanto, isso é ilusório, porque o procedimento de
representar a realidade de forma objetiva já configura uma posição
ideologicamente tendenciosa.
TEMPO
Em O Cortiço, o tempo é trabalhado de maneira linear, com
princípio, meio e desfecho da narrativa. A história se desenrola no Brasil do
século XIX, sem precisão de datas. Há, no entanto, que ressaltar a relação do
tempo com o desenvolvimento do cortiço e com o enriquecimento de João Romão.
ESPAÇO
São dois os espaços explorados na obra. O primeiro é o
cortiço, amontoado de casebres mal-arranjados, onde os pobres vivem. Esse
espaço representa a mistura de raças e a promiscuidade das classes baixas.
Funciona como um organismo vivo. Junto ao cortiço estão a pedreira e a taverna
do português João Romão.
O segundo espaço, que fica ao lado do cortiço, é o sobrado
aristocratizante do comerciante Miranda e de sua família. O sobrado representa
a burguesia ascendente do século XIX. Esses espaços fictícios são enquadrados
no cenário do bairro de Botafogo, explorando a exuberante natureza local como
meio determinante. Dessa maneira, o sol abrasador do litoral americano funciona
como elemento corruptor do homem local.
ENREDO
O livro narra inicialmente a saga de João Romão rumo ao
enriquecimento. Para acumular capital, ele explora os empregados e se utiliza
até do furto para conseguir atingir seus objetivos. João Romão é o dono do
cortiço, da taverna e da pedreira. Sua amante, Bertoleza, o ajuda de domingo a
domingo, trabalhando sem descanso.
Em oposição a João Romão, surge a figura de Miranda, o
comerciante bem estabelecido que cria uma disputa acirrada com o taverneiro por
uma braça de terra que deseja comprar para aumentar seu quintal. Não havendo
consenso, há o rompimento provisório de relações entre os dois.
Com inveja de Miranda, que possui condição social mais
elevada, João Romão trabalha ardorosamente e passa por privações para
enriquecer mais que seu oponente. Um fato, no entanto, muda a perspectiva do
dono do cortiço. Quando Miranda recebe o título de barão, João Romão entende
que não basta ganhar dinheiro, é necessário também ostentar uma posição social
reconhecida, freqüentar ambientes requintados, adquirir roupas finas, ir ao
teatro, ler romances, ou seja, participar ativamente da vida burguesa.
No cortiço, paralelamente, estão os moradores de menor
ambição financeira. Destacam-se Rita Baiana e Capoeira Firmo, Jerônimo e
Piedade. Um exemplo de como o romance procura demonstrar a má influência do
meio sobre o homem é o caso do português Jerônimo, que tem uma vida exemplar
até cair nas graças da mulata Rita Baiana. Opera-se uma transformação no
português trabalhador, que muda todos os seus hábitos.
A relação entre Miranda e João Romão melhora quando o
comerciante recebe o título de barão e passa a ter superioridade garantida
sobre o oponente. Para imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias
mudanças na estalagem, que agora ostenta ares aristocráticos.
O cortiço todo também muda, perdendo o caráter desorganizado
e miserável para se transformar na Vila João Romão.
O dono do cortiço aproxima-se da família de Miranda e pede a
mão da filha do comerciante em casamento. Há, no entanto, o empecilho
representado por Bertoleza, que, percebendo as manobras de Romão para se livrar
dela, exige usufruir os bens acumulados a seu lado.
Para se ver livre da amante, que atrapalha seus planos de
ascensão social, Romão a denuncia a seus donos como escrava fugida. Em um gesto
de desespero, prestes a ser capturada, Bertoleza comete o suicídio, deixando o
caminho livre para o casamento de Romão.
ALEGORIA DO BRASIL
Mais do que empregar os preceitos do naturalismo, a obra
mostra práticas recorrentes no Brasil do século XIX. Na situação de capitalismo
incipiente, o explorador vivia muito próximo ao explorado, daí a estalagem de
João Romão estar junto aos pobres moradores do cortiço. Ao lado, o burguês
Miranda, de projeção social mais elevada que João Romão, vive em seu palacete
com ares aristocráticos e teme o crescimento do cortiço. Por isso pode-se dizer
que O Cortiço não é somente um romance naturalista, mas uma alegoria do Brasil.
O autor naturalista tinha uma tese a sustentar sua história.
A intenção era provar, por meio da obra literária, como o meio, a raça e a
história determinam o homem e o levam à degenerescência.
A obra está a serviço de um argumento. Aluísio se propõe a
mostrar que a mistura de raças em um mesmo meio desemboca na promiscuidade
sexual, moral e na completa degradação humana. Mas, para além disso, o livro
apresenta outras questões pertinentes para pensar o Brasil, que ainda são
atuais, como a imensa desigualdade social.